domingo, 19 de junho de 2011

A moça tecelã

A moça tecelã

 "Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite.  E logo sentava-se ao tear.
          Linha clara, para começar o dia.  Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
          Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
          Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo.  Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido.  Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
          Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
          Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
          Nada lhe faltava.  Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas.  E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido.  Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete.  E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
          Tecer era tudo o que fazia.  Tecer era tudo o que queria fazer.
          Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
          Não esperou o dia seguinte.  Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado.  Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.
          Nem precisou abrir.  O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.
          Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
          E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu.  Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
          — Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher.  E parecia justo, agora que eram dois.  Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
          Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
     — Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou.  Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
          Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia.  Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
          Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
          — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
          Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados.  Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
          E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros.  E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.
         Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
          Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.  Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. 
          A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar.  Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas.  Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
          Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara.  E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte."

                                               (Texto e perfil extraídos do livro "Doze Reis e a Moça no Labirinto do  Vento", São Paulo:Global, 1999. p. 12-16)


Semântica e análise

1.  Pesquise no dicionário e dê o significado das palavras destacadas nas frases.

a)      ...como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite.”

b)       “...a claridade da manhã desenhava o horizonte.”

c)       “...a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo.”

d)      “O homem tinha descoberto o poder do tear.”

e)       “Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.”


2. Observe que no texto “A moça tecelã” a personagem vivia muito feliz com sua vida simples e sua delicadeza.
a)      Em que momento do dia a moça sentava-se ao tear? Responda com elementos do texto.

b)      Por que a moça tecelã escolhia a linha clara para começar o dia?


3. A partir do momento que o tempo passava a moça escolhia cores diferentes para tear. Por quê?

4. Com o passar do tempo a moça começou a se sentir só. Que atitude ela tomou para que não se sentisse mais assim?

5. Por que o moço ao entrar na “casa” da moça não precisou nem que ela abrisse a porta?

6. Na sua opinião, era aquilo mesmo o que a moça tecelã procurava para sua vida? Como ela se sentiu ao perceber a realidade?

7. O marido tornou-a escrava de todos os desejos que ele possuía, sem se importar com os sentimentos da moça.

a) Que atitude a moça tomou diante da situação?

b) Como ela se sentiu depois da atitude tomada por ela?'

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